quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bollito Misto

Meados dos anos 80, estudante no interior, meu sonho de consumo era ser servido pelo Seu Ático. Seu Ático na época era maitre no Cá D'Oro, ainda (supostamente) um dos restaurantes mais bacanas de São Paulo. Meu único livro de cozinha na época - "Os Prazeres da Mesa", do Saul Galvão - trazia logo no início as receitas do restaurante, dentre as quais minha preferida era o Pato à Colleoni. Receita de antigamente, hoje esquecida, tema futuro desse blog, e que surpreendentemente foi tema também da sempre excelente coluna do Dias Lopes no caderno Paladar do Estadão. Um dia comeria o tal pato servido pelo Seu Ático, pensava eu. Nunca aconteceu. Quando cheguei em São Paulo descobri que o Cá D'Oro já estava em decadência, e Seu Ático fora trabalhar para os Fasano. O Pato à Colleoni cedeu então lugar no meu imaginário a um prato ainda mais simbólico da região italiana de meus antepassados, que Seu Ático já servira no Cá D'Oro, e agora servia no Fasano: o Bollito Misto.




Demorou ainda um bom tempo para que eu pudesse provar o Bollito do Fasano e virar freguês costumaz de Seu Ático, que hoje em dia tenho o privilégio de encontrar ao menos uma vez por mês às Quartas-feiras no Parigi, quando nem olho o cardápio - afinal, é dia de Bollito.

Depois do resultado da comparação dos métodos de preparo do Boeuf Bourguignon Sous Vide e Tradicional, resolvi deixar de lado a receita do livro "O restaurante Fasano e a Cozinha de Luciano Boseggia" e partir para a minha leitura do prato. Queria certamente prepará-lo sous vide, e aproveitar para brincar um pouco com meu recém-adquirido arsenal de truques ditos "moleculares" (já comentei que detesto o termo...). Obviamente, dá para preparar a receita de maneira totalmente tradicional; basta checar a receita na Biblioteca UOL (o livro é de 1993 e está fora de catálogo faz tempo). Mas a versão que eu inventei ficou bastante boa, apesar de pedir equipamento adequado e pelo menos um ingrediente exdrúxulo, porém não mandatório, a transglutaminase (que pode ser facilmente encontrada no GastronomyLab, do chef Kaká Silva).

Bollito Misto
Inspirado no livro "O restaurante Fasano e a Cozinha de Luciano Boseggia"

Ingredientes (para 12 pessoas)
Para o Bollito
1 paleta ou pernil de vitela de ~1,5kg, desossado ou não
1,5kg de músculo
1kg de carne seca de primeira
2 peitos de frango desossados grandes, ~1kg
1 zampone (pé de porco recheado, normalmente disponível das marcas conhecidas de embutidos italianos)
Caldo de carne - aqui não tem jeito, tem que fazer fresco mesmo, é essencial no prato....
Preparado Demi Glacé linha Chef Professional Nestlé (opcional), Carne e Frango
Cebola, cenoura, salsão, tomilho fresco (como aromáticos)
1 repolho grande
1kg de batatas pequenas
20 mini cenouras
30 mini cebolas pérola
Para a Salsa Peará
100 g de tutano de vitela
1 litro de caldo de carne
80 g de farinha de rosca (nem pense em comprar o lixo que se vende em pacotinho; compre um bom pão italiano, fatie, torre e moa rusticamente no processador)
4 colheres (sopa) de parmesão ralado
sal e pimenta a gosto
Para a Salsa Verde
350 g de salsinha
250 g de pepinos em conserva
1 xícara de azeite extravirgem
1 xícara de vinagre de vinho branco
2 dentes de alho
50 g de aliche
50 g de alcaparras
1 ovo cozido
sal e pimenta a gosto

Preparo
Com antecedência, eventualmente dias, faça o caldo de carne. Eu resolvi fazer tudo de uma vez só, é muito trabalho junto. No meu caldo usei vértebras de vitela, mas pode-se usar osso de canela de boi, etc. De qualquer forma, esse é assunto para outro post. Em dúvida? Faça o rapa no freezer do Santa Luzia, vai precisar de muitos potinhos.....

Coloque a vitela, o músculo e o frango numa salmoura a 10% (100gr de sal para cada litro de água). Isso garante que a carne não solte filamentos brancos de proteína durante o cozimento, e já deixa o ponto de sal correto. Pode-se aromatizar a salmoura com ervas, alho, rodelas de laranja, etc. Descanse na geladeira por 1 a 2 horas.

Coloque a carne seca para dessalgar em água fria por 24 a 48 horas, trocando sempre. Eu não fiz isso, tive que apelar e dessalgar a quente, escaldando como se fosse para feijoada. Show de horror, mesmo depois de horas de cozimento ficou parecendo um bíceps do Tutancâmon, nem servi. Isso porque a carne seca já é desidratada pelo sal, e o escaldamento faz contrair ainda mais as fibras, encolhendo e endurecendo a carne - já a dessalga a frio relaxa e rehidrata as fibras. Vivendo e aprendendo...

Retire as carnes da salmoura, seque superficialmente, e vamos para a "colagem" com transglutaminase, se quiser fazê-lo: pulverize a transglutaminase sobre a carne e vá juntando as partes; em seguida enrole em muito filme plástico. Leve à geladeira por aproximadamente 4 a 5 horas. Faça o mesmo com o Tutancâmon, quer dizer, a carne seca (depois de colado ficou ainda mais grotesco, somente continuei com esse ingrediente por curiosidade científica...)

Retire as carnes do filme plástico. Elas dever ter se tornado peças compactas; os peitos de frango viraram um "super peito", o músculo parece um pernil, a vitela - se desossada - idem. A carne seca estava mais pra um Miró 3D.... Pulverize cada peça com um pouco do preparado demi glacé; como no Boeuf Borguignon, além do preparado servir como reforçador de sabor, o dióxido de silício da fórmula seca a carne, fazendo o envelopamento a vácuo muito mais fácil (levando em consideração que não temos uma máquina de vácuo de câmara). Nesse caso, usei o de Frango na vitela e no frango, e o de Carne no músculo e na carne seca. Coloque cenoura, cebola, salsão e ervas no saco, e faça o vácuo (vide foto).


Coloque todas as carnes (menos o zampone) no termocirculador a 80C e vá dormir, mas não muito: depois de 8 horas, retire o frango e dê um choque térmico com gelo. Deixe as outras carnes mais 3 horas no banho. Quando faltar 1 hora para servir, volte o frango e acrescente o zampone ao termocirculador.
Antes disso, porém, prepare os legumes: aqueça o caldo de carne e cozinhe tudo até ficar macio: mini cebolas, mini cenouras, batatinhas, o repolho inteiro. retire conforme o ponto, e coloque em recipientes para servir, cobrindo com uma concha de caldo. O repolho é cortado ao meio, o talo retirado, fatiado, e ganha uma concha de caldo também. Embora não aparente, essa operação consome muito caldo, absorvido pelos legumes



Em paralelo, prepare os dois molhos: para a Salsa Peará, cozinhe o tutano no caldo de carne por 1 hora e passe por uma peneira. Junte a farinha de rosca aos poucos, mexendo sempre. Cozinhe por alguns minutos. Retire do fogo. Acrescente o parmesão ralado. Tempere a gosto com sal e pimenta moída na hora. Para a Salsa Verde, bata no liquidificador o aliche, os pepinos, as alcaparras, o ovo, o vinagre, o azeite e o alho. Junte a salsinha, tempere com sal e pimenta a gosto e bata mais um pouco. O Peará, meu preferido, ficou absolutamente idêntico ao do Parigi. O Verde ficou bom, mas bem diferente do Parigi, onde aparentemente a maioria dos ingredientes é picado na ponta da faca. De qualquer modo, talvez fosse a versão do Fasano na época, mesmo a aparência das fotos que pesquisei. Ficou mais ácido que gostaria, mas bem bom também. Quem conhece o prato vai notar a ausência de outros 2 molhos: raiz forte (dispenso...) e Mostarda di Cremona, que não achei pronta, nem os "pertences" pra produzí-la. Substituí por uma sensacional mostarda doce de laranja que comprei na Firestone Vineyards na Califórnia (vinhos medíocres, lugar lindo, produtos gourmet de ponta) e uma geléia espanhola de maçãs e especiarias que ganhamos de nossa comadre, fantástica.

Retire os sacos do termocirculador, fazendo uma incisão nas embalagens e recolhendo os caldos através de uma peneira fina antes (menos do zampone); incorpore no caldo que restou dos legumes e aqueça rapidamente para cozinhar um pouco de massa (idealmente capellini d´angelo de uma boa marca, eu usei Giuseppe Cuoco) in brodo caso tenha crianças na mesa - foi o acompanhamento preferido da molecada.
Fatie as carnes, e leve toda a infinidade de travessas à mesa.



Refastelem-se.




Veredicto: melhor que eu esperava. As carnes suculentas, no ponto. A brincadeira da transglutaminase fez o músculo se transformar num cilindro bonito de carne e gelatina macia (vide foto de capa), os peitos de frango colaram tão bem que não se divisava a emenda, parecia um enorme foie gras (cor e formato), a carne seca do Tutancâmon foi direto pro museu do Cairo, mas não fez falta. Enfim, missão cumprida.

3 comentários:

  1. Este prato eu tive o prazer de experimentar. Estava muito bom! Algumas mulheres torceram o nariz para as carnes, não conseguiram encarar o cottechino, mas eu já venci os preconceitos visuais ou de origem. Como de tudo, principalmente, o que é saboroso e tem tradição. A combinação saborosa, o pirão realmente com personalidade e dando um toque de junção.

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  2. Dellícia!!!Eu trabalhei no Parigi e degustava essa especialidade todas as quartas e domingos rsrs...

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  3. Hummm, finalmente achei a receita quase original...quer dizer, cada região tem a sua fórmula. Mas o do Parigi é muuito bom! arabéns, vou anota e fazer esse domingo em casa.

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