sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Food For Thought - Preparações Básicas

De todos os truques da cozinha que o amador pode aprender com o profissional, por mais mirabolantes que sejam, nenhum tem mais eficácia que a (simples) arte de preparar seus próprios caldos-base. Na verdade, o uso de caldos feitos com capricho, baixa temperatura e ingredientes frescos naturais é um divisor de águas, capaz de transformar "comida caseira" em pratos dignos dos melhores restaurantes. Na cozinha francesa são chamados de "le fond", o alicerce sobre o qual os pratos são "construídos" - e o conceito vale para toda a culinária ocidental, e também oriental. Os muitos molhos sobre as carnes, aves e peixes grelhados; o boeuf bourguignon, os risottos, o bouillabaisse, o yakisoba; a paella, o bollito, as sopas; o picadinho, o coq au vin, o arroz de pato.... a lista de pratos que mudam de patamar com o uso de caldos frescos é infindável.




Os caldos de carnes e aves podem ser de dois tipos: claros e escuros, dependendo do tratamento que se dá aos ossos antes do preparo. Para os caldos claros, submetemos os ossos a uma rápida fervura para eliminar restos de sangue e gordura, dispensamos essa água e enxaguamos os ossos antes de usá-los. Para os escuros, os ossos são assados no forno antes do preparo, dispensando a fervura e dourando a carne, o que acaba dando a cor mais escura que dá nome à tecnica, não é necessário enxaguar.

Escrevo caldos, no plural, porque podem ser produzidos a partir de vários ingredientes diferentes - todo restaurante que se preza produz vários deles: carne, frango, pato, peixe, legumes, etc. Na prática, porém, essa variedade toda é inviável para nós, amadores - cozinheiros de final de semana, que passamos a semana ralando no trabalho. Felizmente, podemos contar com O caldo universal, a arma secreta que transformará sua cozinha e deixará seus convidados de boca aberta, pedindo mais: o caldo de vitela.

Toda vez que falo a respeito do caldo de vitela acham que estou exagerando. Eu também achava. Ele sozinho, aliás, é bem sem graça. Mas utilizado em um prato, transforma o resultado final de tal maneira que até parece mágica. Comecei a prepará-lo por influência de Michael Ruhlman, o escritor de gastronomia que descobri nos livros do über-chef Thomas Keller (French Laundry, Per Se). Aliás, muito desse texto vem dos livros dele. E o camarada tem razão, caldos nada mais são que a extração da essência de ingredientes para um meio líquido, que depois é utilizado para realçar o sabor das preparações em que são utilizados. Esse é o motivo pelo qual o caldo de vitela se destaca dos demais: como é proveniente de um animal jovem, a carne não tem sabor pronunciado, e é riquíssima em colágeno. Assim, não mascara ou altera nada em que é colocado, mas sim alavanca, destaca, valoriza o sabor natural dos outros ingredientes, ao mesmo tempo em que a grande quantidade de colágeno ajuda a dar corpo às preparações. Em função disso, é o caldo que mais preparo, e uso nas mais diversas receitas que levem carnes, aves, legumes e até peixes. O único impecilho aqui são os ossos de vitela em si, já que não são encontráveis em qualquer açougue. Felizmente, sempre encontro no Mercado Central e no Santa Luzia; os ossos da coluna têm bastante carne ainda e muito tutano, são perfeitos.

Enfim, ossos de vitela encontrados, vamos ao preparo. Eu sempre preparo o caldo de vitela escuro, que funciona bem com todo tipo de alimento e dá bastante corpo e caráter às receitas. É uma questão de estilo, se preferir sabores mais sutis, mais neutros, pode fazer o claro, não tem certo nem errado aqui.

Caldo de Vitela
Inspirado no livro "Ratio", de Michael Ruhlman

A receita não tem quantidades absolutas, está em proporção por peso. Nem precisa de balança pra isso, já que água pesa 1Kg por litro; basta saber quanto comprou de ossos e medir a água por volume. Quanto aos aromáticos pode-se estimar, a quantidade não é tão crítica.

Ingredientes
3 Partes de Água
2 Partes de Ossos de Vitela
Aproximadamente 1/2 Parte Legumes (Cebolas, Cenouras, Alho Poró e/ou Salsão em quantidades iguais)
1 Bouquet Garni generoso (Salsinha, Cebolinha, Tomilho, ramo pequeno de Alecrim, duas folhas de Louro)

Preparo
Coloque os ossos na panela e leve ao forno alto. Quando estiver dourada, sequinha e com aroma de um assado pronto, cubra com água fria e abaixe o forno.

A temperatura ideal do forno é 80 a 90C, não deve ferver em hipótese alguma. Se seu forno não for preciso, um termômetro de forno custa barato e ajuda muito.

Deixe cozinhar por um mínimo de 6 horas, se puder ficar até 10 horas, melhor. Se o forno for confiável e tiver dispositivos de segurança, dá rpa deixar cozinhando durante a noite.

Complete com água quente (mas não fervendo) se tiver evaporado muito, e acrescente os legumes picados grosseiramente e o bouquet garni, e cozinhe por mais 2 horas.

Retire a panela do forno, tire com cuidado os ossos e aromáticos com uma escumadeira, e coe duas vezes: primeiro pela peneira fina, e novamente com ela forrada com um pano de prato ou Perfex.

Embale em potes ou sacos Ziploc nas porções que desejar (eu faço em 500 ml) e congele.


Espessantes
Os caldos normalmente são muito fluidos, não têm uma textura apetitosa. Quando preparamos molhos baseados em nossos caldos, caso não haja nada na composição que dê a espessura necessária, precisamos utilizar algum agente espessante. O amido contido numa simples mistura de água e farinha ou maizena engrossa um molho, mas o resultado final é grosseiro. Isso porque o amido precisa se tornar totalmente em gel para que o gosto farinhento desapareça, e esse é um processo lento, que acontece a 83C. Uma alternativa melhor é um roux: farinha e manteiga em partes iguais, cozido numa panela até que a mistura fique dourada. Parte do gosto de farinha desaparece, mas se mantivermos no fogo todo o amido é destruído antes de se transformar em gel. De qualquer forma, é uma solução bastante prática.

A alternativa mais refinada é o velouté: uma mistura densa de roux e caldo, cozida lentamente no forno, o que transforma o amido em gel e perde todo o gosto de farinha:

Velouté

Ingredientes
1 Parte Farinha
1 Parte Manteiga
5 Partes Caldo (o que tiver à mão)

Preparo
Doure a farinha na manteiga.
Incorpore o caldo, homogeinize com o fouet (vai ficar com uma textura parecida com maionese), e leve ao forno num recipiente fechado a 80C por 6 a 8 horas

Adicione aos poucos ao seu molho, até atingir o ponto desejado.


Aplicação prática

Além de usar o caldo para fazer seu risotto, picadinho, ou boeuf bourguignon, ele também é base para uma infinidade de molhos.

Um exemplo simples e prático do Ruhlman:

Pique uma xícara de cogumelos frescos, refogue numa panela para molho bem quente com um fio de óleo
Acrescente uma echalota ou cebola picada até que fique transparente
Incorpore meia xícara de vinho branco, deixe reduzir
Acrescente uma ou duas xícaras de caldo, reduza novamente
Incorpore velouté até atingir a textura desejada
Tempere com sal e pimenta do reino, eventualmente ervas picadas.

 Terá um molho bacana para colocar sobre seu roast beef ou peixe grelhado. Para um franguinho, acrescente um pouco de suco de limão. Porco? Junte uma colher de mostarda. E por aí vai.

Use sua imaginação, e terá um prato digno de Alain Ducasse.

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