sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Paella

O dilema do cozinheiro amador é que, caso queira sempre experimentar e tentar novas técnicas e idéias, está inexoravelmente sujeito àquilo que, na teoria de probabilidade e estatística, convencionou-se chamar de "tentativa de Bernoulli": uma experiência aleatória com apenas duas possibilidades, "sucesso" ou "insucesso". O tal do Bernoulli dizia que as probabilidades de "sucesso" ou "insucesso" variavam conforme a situação. Na cozinha, a situação quase sempre joga contra; a probabilidade de uma preparação dar certo de primeira diminuem na razão direta da complexidade do prato e do número de fatores desconhecidos que enfrentamos. Confesso que - mesmo sabendo disso - quando tento algo que tem tudo pra dar errado, e dá, eu fico injustificadamente ensandecido (e isso acontece com considerável frequência). Agora, às vezes as coisas dão certo de primeira. E muito, muito raramente, a situação que tinha absolutamente tudo pra dar errado, dá certo - e chegamos a um resultado que julgamos perfeito. Foi o que acontececeu com a minha última, e mais perfeita, paella...




Eu tenho minha paella (a panela, que recebe o mesmo nome do prato) faz muito tempo. Usei pela primeira vez logo que comprei. Resultou numa paella bastante boa, até porque tinha um dos melhores chefes do Brasil dando pitaco do meu lado. Voltei a utilizá-la recentemente, com um resultado também bastante decente, mas ainda não me dava por satisfeito. Primeiro, porque não conseguia fazer minha esposa se empolgar pelo prato. Segundo, eu também não me empolgava; já comera em vários lugares - inclusive restaurantes onde cobravam uma fortuna por esse que era o carro-chefe - sem nunca encontrar a paella descrita nos livros, com o arroz al dente, as carnes e peixes no ponto certo de cozimento, e, principalmente, o famoso soccarat.

Pra mim o tal soccarat era lenda. O nome é dado à crosta de arroz caramelizado que (supostamente) se formava no fundo da paella, disputada a tapas por quem entendia do assunto. Mas eu nunca havia me deparado com nada que chegasse perto da descrição, mesmo nos tais restaurantes. Fui pesquisar: a formação do soccarat requer altas temperaturas, maiores que as proporcionadas mesmo por aquelas bocas a gás especiais para paella que se vêem nas cozinhas dos restaurantes espanhóis. Ele aparece nas paellas preparadas à moda antiga, como faziam os camponeses da Valencia no passado, sobre brasas de fogueira ao ar livre, não numa cozinha.

Eu havia comprado recentemente uma churrasqueira Weber, influenciado pelos resultados obtidos quando CP e eu preparamos o Frango com Sauternes. Dado que a maioria das receitas de paella recomenda que se abafe a panela para que o arroz cozinhe por igual (pois, diferente de risotto, não se mexe na paella durante a cocção), resolvi que era ali que faria minha próxima tentativa: alta temperatura homogênea, a capacidade de irradiar calor por cima, e fogo de carvão. Alta temperatura, panela de aço carbono de fundo fino, cozinhando tampada? Só podia dar errado. Mas deu muito, muito certo!!!

Paella de Camarones, Pollo y Setas
Receita inspirada pelo chef Jose Andrés, técnica inspirada en séculos de tradição

Ingredientes (para 10 pessoas)
1 paella tradicional (aço carbono) de 40 a 42 cm
1 churrasqueira Weber (na verdade, serve qualquer churrasqueira - mas a tampa ajuda muito)
500 gr de arroz Bomba espanhol (até serve um Arborio italiano, mas nunca arroz longo comum)
600 gr de coxas de frango cortadas em discos (tem no Santa Luzia, mas um açougueiro de boa vontade faz)
600 gr de camarões rosa médios descascados
1 cauda de lagosta desfiada (opcional, mas eu tinha uma no freezer que ia vencer.....)
500 gr de shiitake fatiado sem os talos
1.5 L de caldo de vitela ou caldo de peixe
3 a 4 echalotes e 2 dentes grandes de alho picados bem pequeno
200 gr de passata de tomates italiana
1 envelope de Paellero (mistura de temperos para Paella, até no Pão de Açúcar tem)
Paprika picante (opcional)
Açafrão (opcional)
Azeite

Preparo
Acenda a churrasqueira; se for Weber, tente colocar o carvão numa camada homogênea no fundo. Deixe o carvão virar um braseiro uniforme e BEM quente. Ajeite algum suporte para a paella; pode ser a grelha ou (no caso da Weber) dispense a grelha e use o separador de carvão. Quanto mais perto da brasa, melhor.

Deite um fio muito generoso de azeite no fundo da paella e leve ao fogo. Vai esquentar muito rápido! De agora para a frente, não pode dar bobeira. Coloque os discos de coxa de frango temperados com sal e pimenta no azeite; grelhe até ficarem dourados.

Retire rapidamente (mesmo, a paella carboniza rápido nessa temperatura) o frango, adicione os camarões também temperados com sal e pimenta do reino; grelhe bem rápido ambos os lados.

Retire os camarões (mais uma vez, rápido), junte mais azeite e refogue as echalotas e o alho; acrescente os cogumelos e (se for o caso) a lagosta. Assim que dourar tudo, coloque o tomate.

Acrescente o caldo pré-aquecido com o Paellero já dissolvido (se quiser um sabor mais marcante, adicione um pouco de paprika e pistilos de açafrão - eles já estão presentes no Paellero, mas vale a pena dar uma turbinada, até porque o sabor do açafrão em pistilo é muito superior).

Espalhe o arroz uniformemente na panela, em formato de asterisco: pegue punhados e vá cobrindo todo o fundo da panela, rapidamente.

Acerte o sal, retorne o frango para a paella; tampe a churrasqueira (se tiver tampa, óbvio).

Resista à tentação de olhar com frequência; após uns 10 a 15 minutos, deve estar assim:


Quando estiver quase seco, retorne os camarões e volte a fechar por alguns minutos.

Abra a tampa e ouça a paella; se começar a fazer barulho de grelhado, o soccarat está se formando. Comece a prestar atenção no cheiro, para evitar que queime. Esse processo é muito rápido. Arroz seco, paella estalando e cheiro bom, ela deve estar mais ou menos desse jeito:


Leve à mesa acompanhada de Sangria, um bom rosé ou branco, e Buen Provecho!!!

2 comentários:

  1. Poxa, Lanfranchi, Bernoulli na cozinha! Isso é que eu chamo de perfeccionismo! Eu acho que na cozinha tudo que pode estar dando errado pode ser recuperado, mas claro que depende do nível de exigência dos famintos. Vai ver que é por isso que eu trabalho em Tecnologia, eu tenho fé! kkkkk beijos, e adorei o post!

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