quinta-feira, 29 de julho de 2010

Bistecca Alla Fiorentina

Diz-se que Dario Cecchini é o melhor açougueiro do mundo. Ou que é, ao menos, o açougueiro mais famoso do mundo. Fato ou não, descobri Dario Cecchini e sua Antica Macceleria Cecchini quando li "Heat: An Amateur's Adventures as Kitchen Slave, Line Cook, Pasta-Maker, and Apprentice to a Dante-Quoting Butcher in Tuscany", sensacional relato do editor de ficção da "The New Yorker", Bill Buford, sobre o sabático de 2 anos que tirou para aprender sobre a culinária italiana in loco (um dia ainda faço o mesmo...). Bill passou bom tempo trabahando no açougue/restaurante de Dario (no caso, o "Dante-Quoting Butcher in Tuscany" do título), numa cidadezinha no coração da Toscana, aprendendo sobre as carnes, a cozinha e a cultura da Toscana. Ironicamente, eu comecei a ler o livro justamente na Toscana, durante uma viagem de bicicleta, e estava a poucos quilômetros do lugar, mas ainda não tinha chegado a esse capítulo - triste, mas pelo menos é um bom motivo para voltar. Enfim, de tudo que o Bill viu, nada mais icônico que a Bistecca Alla Fiorentina...




Eu sempre fui fã ta tal Bistecca. Comi a "original" pela primeira vez em Florença, quando lá estive com minha amada em lua-de-mel. Excepcional. Depois, quando finalmente tive uma churrasqueira decente, desenvolvi minha versão do prato, que venho aprimorando ao longo do tempo. Depois que descobri a técnica do sous-vide, evolui a receita mais, chegando a um resultado bem legal. Mas não sabia muito da receita original, já que, francamente, näo corri muito atrás. Havia apenas comentado uma vez sobre o assunto com o mestre Sergio Arno, que deu uma geral de como costumava servir num prato fumegante, regada com azeite, etc - mas nunca comi a versão preparada por ele. Continuei fazendo do meu jeito, até que surgiu Dario Cecchini.
O Dario que Bill Buford descreve no livro é bem figuraça, e o que pesquisei sobre o sujeito depois confirma isso. Marqueteiro, roda o mundo fazendo propaganda da Toscana, e atrai legiões de foodies melhor informados que eu aos seus restaurantes, onde serve, entre outros pratos, Bistecca.
O que é a Bistecca Alla Fiorentina "original"? É um t-bone alto, basicamente. Mais precisamente, um porterhouse alto, entre 6 e 8 cm de espessura. Antigamente a carne era de gado Chianina, raça elegante, natural da Toscana, que acabou inviável economicamente, os pastos sendo substituídos pelos infinitamente mais lucrativos vinhedos. Até o Dario compra hoje carne na Espanha. Enfim, o corte é grelhado em fogo muito forte, levemente temperado com sal, pimenta e azeite e, assim, devorado. A descrição do próprio Dario (em italiano, óbvio) é a seguinte:

TEORIA DELLA BISTECCA ALLA FIORENTINA

Dato per certo che la bistecca alla fiorentina Ë uno dei più alti godimenti fisici della vita terrena ne consegue che essa non è migliorabile né aggiustabile agli usi moderni in quanto perfetta e come tale intoccabile.
Esecuzione: osso a T, filetto e controfiletto, carne di manzo matura di età e di almeno 20 giorni di frollatura, giustamente grassa non fredda di frigorifero, tenuta in piedi su un tagliere di legno ad attendere le braci (l'ultima parte è più simbolica che pratica, ma non per questo meno importante).
Brace ardente di quercia o leccio fatta sfogare del suo punto più alto, quando cioè si comincia a vedere un po' di cenere bianca.
Griglia rasa e Maestro di Fuoco pronto alla cerimonia con un bel bicchiere di Chianti accanto per dargli il giusto coraggio.
Cinque rapidi minuti per lato, quindici in piedi. Niente sale né altro condimento che possa offendere questa alchimia.
Tagliere di legno, ancora la carne in piedi, tagliare a cubi, mordere!
Descrivere il piacere per un sano carnivoro è impossibile.
E' la comunione con la Toscana suggellata dal vino rosso. Dopo volendo si può leggermente salare, pepare o benedire con pochissimo olio.

Pois bem. Já era assunto suficiente para um post, pois eu queria comparar a minha versão com a original. Mas um par de eventos ampliou o escopo da experiência: já pesquisando para o tema, fui um dia almoçar no Varanda Grill e pedi um porterhouse, queria o mais próximo possível de uma Bistecca Alla Fiorentina. O maitre me disse que o corte estava mesmo fantástico, mas - detalhe - vinha desossado. Por que alguém desossaria algo tão perfeito? Porque, segundo ele, com osso não tinha saída. Pedi, comi, adorei, mas senti a falta do osso. Não do osso em si, mas do elo de ligação dos dois pedaços de carne. Cena dois, estou novamente almoçando, agora no Tre Bicchieri (novo italiano, próximo aliás do Varanda, excelente) e descobri uma Bistecca Alla Fiorentina no cardápio. Agora vai! Surpresa: a danada vinha também desossada, mas agora devido (segundo o maitre) à proibição da importação de carne com osso. O corte australiano estava magnífico, mas novamente estranhei o contra-filé e o filé mignon no prato, separados. Aí surgiu a idéia do terceiro componente do post: e se eu reconstituísse a Bistecca desossada? Se colássemos o contra-filé e o filé mignon com transglutaminase? Aí a brincadeira vai ficar veramente interessante...

Bistecca Fiorentina In Tre Movimenti
La Tradizionale per Dario Cecchini, as outras duas por minha conta mesmo



Faremos as Bisteccas de 3 maneiras: tradicional, a minha (marinada, cozida em baixa temperatura e depois grelhada) e reconstruída. Para acompanhar, feijões à moda toscana (acompanhamento clássico) e uma espuma de azeite aromatizado (acompanhamento high-tech)

Ingredientes (para 6 pessoas)
Para as Bisteccas
2 T-bones com 7 cm de espessura
1 bife ancho com 7 cm de espessura
1 medalhão de filé mignon com 7 cm de espessura
Alecrim
Azeite
Aceto Balsamico
Sal grosso
Para o Feijão Toscano
1/2 kg de feijão branco, preferencialmente cannellini
Bacon
1 Cebola
Sálvia
Para a Espuma de Azeite Aromatizado
200gr de azeite, aromatizado conforme sua preferência (alho, alecrim, etc)
16gr de mono-diglicerídeos (Glice, na linha de Texturas do Ferran Adriá)

Preparo
Para a Espuma de Azeite Aromatizado
Misture o azeite com mono-diglicerídeos, leve ao fogo baixo até que os cristais se dissolvam.
Deixe esfriar um pouco, coloque no sifão gourmet e aplique um cartucho de gás.
Pode-se servir à temperatura ambiente, com textura de chantilly, ou deixar em banho maria a 55 graus, que fica mais para uma maionese densa.
Mono-diglicerídeos é um emulsificante, faz o azeite adquirir consistência pastosa como de manteiga, ou, se usado num sifão, forma a espuma como descrito. Dá pra deixar esfriar e modelar como se fossem tabletes de manteiga para colocar sobre a carne ao estilo Café de Paris, por exemplo, com ervas dentro, etc. Muito interessante. Encontra-se para comprar no GastronomyLab.

Para o Feijão Toscano
Cozinhe os feijões normalmente
Refogue a cebola e a sálvia picadas no bacon derretido
Coloque o feijão no refogado, tempere com sal e pimneta do reino

Para as Bisteccas "Modernas" - à minha moda e reconstruída
Reconstrução
Na antevéspera, solte a membrana do bife ancho. A partir daí, com uma faca afiada, abra o bife ancho como uma tira.



 
Aplique a transglutaminase sobre o interior da tira de bife ancho e sobre a lateral do filé mignon, e junte as superfícies, enrolando o filé mignon com o bife ancho. envolva a lateral com várias voltas de filme plástico, e depois enrole ela toda com mais filme. Leve à geladeira até o dia seguinte.

 


 

 
Primeiro Cozimento
 Na véspera, prepare uma marinada com 1 parte de aceto para 3 partes de azeite, alecrim picado e sal. Espalhe a marinada sobre as duas carnes, e coloque cada uma num saco à vácuo. Leve à geladeira, somente retirando para executar o próximo passo.

Três horas antes do preparo, retire as carnes da geladeira e coloque no termocirculador a 55C.


Preparo Final
Tradizionale

Simplesmente deixe um tempo antes do preparo fora da geladeira, para não ir à grelha gelada, pois além das fibras estarem menos relaxadas, a peça é grossa, vai ficar fria por dentro. O Dario recomenda retirar a carne da geladeira 12 horas antes do preparo; eu aprendi a duras, duríssimas penas que isso não é recomendável num país com clima tropical como o nosso. Duas horas antes está mais que bom.

Coloque na grelha já bem aquecida, mas já abaixo do ponto máximo de temperatura, quando começa a formar cinzas brancas no carvão.

Cinco minutos de cada lado, sem mexer, mais 15 minutos em pé, no osso. O osso vai conduzir calor para dentro de toda a carne.

"Modernas"
Faltando uns 10 minutos para o término do preparo da Tradizionale, retire as "Modernas" do termocirculador e coloque-as na grelha para marcar dos 2 lados. Pode colocar a Bistecca com osso em pé por algum tempo também, mas vá medindo a temperatura interior, não deve passar dos 60C no centro.


Quando o trio estiver no ponto, retire para uma tábua, desosse as peças e corte cada parte em fatias grossas.


Coloque um pouco da espuma de azeite no centro do prato, distribua as carnes ao redor, e uma porção do feijão ao lado. Buon Appetito!



Veredicto: eu respeito muito a tradição, e o preparo tradicional é fantástico, o resultado sensacional. Mas, desculpe-me o Dario, a minha é melhor. BEM melhor. A marinada de aceto e azeite dá outra dimensão de sabor à carne. Talvez usando cortes ultra-premium o resultado seja diferente, mas usei a melhor carne que consegui em SP. A reconstruída ficou, então, linda e incrivelmente deliciosa, embora eu tenha dado uma roubada a seu favor: deveria usar contra e mignon de uma mesma peça, para realmente "reconstruir". Na verdade, usei o bife ancho uruguaio marmorizado do Santa Luzia (R$77 reais o quilo!!!!!!!), e mignon comum. A marmorização da carne humilhou os cortes com osso, assim como a apresentação, cortada em cunha como se fosse um queijo, ficou show. Nâo se notava a emenda entre os cortes, essa transglutaminase funciona mesmo... Enfim, vou passar a fazer assim. Mais uma vez, ponto pras novas tecnologias, aliadas à tradição.


2 comentários:

  1. Onde comprou o T-Bone com 7cm de espessura?

    ResponderExcluir
  2. Oi Brito, pedi para meu açougueiro cortar nessa espessura. Algun açougues ainda processam carne, recebem peças grandes e porcionam sob medida quando pedido. No Mercadão Municipal em SP tem, por exemplo, o Porco Feliz.

    ResponderExcluir